TAMÁM SHUD, O HOMEM DE SOMERTON



Um homem não identificado foi encontrado sem vida na praia de Somerton na Austrália em 1948. Até hoje ninguém sabe a sua verdadeira identidade.

Nunca saberemos o que aconteceu de verdade com um desconhecido chamado apenas de "O Homem de Somerton". Investigações descobriram apenas que ele desceu de um trem, na estação de Adelaide, na Austrália, em uma manhã de verão no ano de 1948. Tudo o que aconteceu com ele antes e depois deste ponto é um verdadeiro mistério até hoje, e a sua morte desafia a polícia e investigadores há mais 6 décadas. Este fato é considerado um dos maiores mistérios policiais da Austrália e do mundo. Tudo o que sabemos sobre ele, é um código secreto que permanece indecifrável, além de teorias de um esquema internacional de espionagem durante a Guerra Fria.


A história começa na manhã de 1º de dezembro de 1948, na praia de Somerton, perto de Glenelg, a 7km da cidade australiana de Adelaide. Um joalheiro local, chamado John Lyons, ficou intrigado com um homem que tinha visto quando ele passou pela orla da praia na noite anterior. Ele estava bem vestido e parecia estar dormindo, apoiado na parede do calçadão.


Lyons inicialmente achou que se tratava de um bêbado, mas na manhã seguinte ele ainda estava lá. Frio e pálido, com um cigarro apagado pela metade no colarinho da camisa. Ao se aproximar, o joalheiro percebeu que o homem estava claramente morto.

Lyons alertou a polícia assim que percebeu que o homem não era apenas mais um bêbado de ressaca, e à primeira vista, o misterioso homem não aparentava ser um mendigo, pois estava bem vestido, com terno, gravata e sapatos recém-polidos.


A causa da morte do homem, inicialmente foi tratada como algo relacionado a uma doença cardíaca ou suicídio, mas rapidamente essas hipóteses foram contestadas, e tudo se tornou muito mais complexo e intrigante, principalmente pelos detalhes que surgiram após a morte do homem.


Por não ter sido identificado imediatamente, ele foi apelidado de "O homem de Somerton". Ele aparentava ter cerca de 45 anos de idade, estava em excelente condição física, inclusive com pernas e braços bem definidos e musculosos para a idade, e as suas mãos eram macias e bem cuidadas. Junto ao corpo, foram encontrados diversos objetos. Uma goma de mascar, um pente de cabelo, uma carteira de cigarros Kensitas, (os mais caros da época), um bilhete de ônibus que ele usou para chegar a Glenelg e uma passagem de trem que não foi utilizada, com destino a uma praia próxima a cidade Henley.
O problema para a polícia era que mesmo com essa pequena variedade de itens, o corpo ainda era totalmente anônimo. Sem carteira, passaporte ou outros documentos de identificação. O mais estranho de tudo, é que as etiquetas de sua roupa foram deliberadamente removidas.


Quem quer que tenha sido o Homem de Somerton, ele queria permanecer anônimo ou então alguém havia removido qualquer forma de identificação do corpo propositalmente. Se o caso ainda não fosse suficientemente estranho e difícil para a polícia de Adelaide resolver, nenhuma causa da morte foi determinada.


Não haviam marcas no corpo ou sinais de luta, e a autópsia revelou que ele não morreu de ataque cardíaco ou outras causas naturais. Havia, no entanto, sinais de danos aos seus órgãos - o cérebro, o estômago e o fígado estavam congestionados com sangue, levando o patologista a suspeitar que ele tenha morrido como resultado de hemorragias causadas por algum tipo de veneno.


Mesmo assim, os patologistas ficaram intrigados. Envenenamento seria a única explicação para a morte dele, mas isso não fazia sentido algum, pois nenhum vestígio de veneno foi encontrado no corpo do homem e não haviam sinais de convulsão ou vômito.


Se a sua morte tivesse sido causada por algum envenenamento, então deve ter sido usado um tipo de veneno muito raro e que não deixava vestígios, o que era estranho para uma pequena cidade australiana da década de 40. Mas as circunstâncias levaram a crer em um assassinato e não um suicídio, pois o estado pacífico e imperturbável do corpo, quando descoberto, sugeria que ele havia sido levado a praia e deixado nesta posição depois que o veneno fez efeito.


Seja qual for a causa da morte, parecia ter sido um trabalho de profissionais. A ocultação dos documentos de identificação, a remoção de todas as etiquetas da sua roupa e os sinais de um veneno sofisticado apontaram para o mundo da espionagem.


Será que o Homem de Somerton era um espião?

Depois de algum tempo, pistas vagas foram surgindo. Alguns moradores sugeriram que o falecido seria um homem chamado E.C Johnson, mas no mesmo dia Johnson compareceu a delegacia de polícia de Adelaide e muito bem por sinal, então essa possibilidade foi descartada. Todas as outras pistas que surgiram no decorrer dos dias não levaram a conclusão alguma. Até mesmo investigações sobre a identidade do homem que foram feitas no Reino Unido e nos EUA não retornaram com nada palpável.


Poucos dias depois da descoberta do Homem de Somerton, o caso se tornou tão frio quanto o corpo na praia. Nenhum nome, nenhuma pista, tudo era um beco sem saída.
No dia 10 de dezembro de 1948, o corpo foi embalsamado, essa foi a primeira vez que a polícia mandou embalsamar o corpo de uma pessoa não identificada ao invés de enterrá-lo como indigente em uma vala comum.


Durante as seis semanas seguintes, o Homem de Somerton não passa de mais um caso sem solução e gerava uma curiosidade local, pois todas as perguntas sobre o que teria acontecido com ele foram esgotadas. Então, em 14 de janeiro de 1949, um avanço foi feito quando os funcionários da estação de trem de Adelaide finalmente estabeleceram uma conexão entre os relatos da mídia sobre o homem misterioso encontrado em Somerton e uma mala não reclamada que havia sido deixada no guarda-volumes da estação em dezembro do ano anterior.


Dentro da mala, a polícia encontrou roupas semelhantes às que o Homem de Somerton estava vestindo. As datas também foram verificadas, e descobriu-se que a mala havia sido deixada na estação no dia anterior à descoberta do corpo do homem. Um pedaço de linha de costura de cor laranja foi encontrado na mala - uma linha de mesma cor tinha sido usada para reparar o bolso das calças do Homem de Somerton. Aquela, com certeza, era a sua mala.


A polícia estava finalmente a ponto de resolver o mistério?

Infelizmente, o conteúdo da mala foi de pouca ajuda para identificar o Homem de Somerton, e tudo o que estava dentro dela só fez aprofundar mais ainda o mistério.


Dentro da mala não tinha nada fora do comum - um roupão, uma calça, um chinelo, cueca, pijama, um barbeador, lápis, envelopes e selos. A coisa mais interessante achada foi uma faca e uma tesoura, um quadrado de zinco e uma escova tipicamente usada por marinheiro em navios mercantes.


O Homem de Somerton poderia ser um marinheiro estrangeiro?

Certamente parecia que ele não era australiano, ou se fosse, viajava frequentemente ao exterior, pois tanto o barbeador como o casaco do homem não eram vendidos na Austrália.
Infelizmente, assim como as roupas que o homem estava vestindo, quase tudo na mala estava sem rótulo ou etiqueta. No entanto, havia algumas exceções. Uma pequena bolsa tipo nécessaire tinha uma etiqueta com o nome “T. Keane”.


Embora essa fosse uma pista importante, os detetives Lionel Leane e Len Brown, responsáveis pela investigação, ficaram confusos. Por que todos os outros rótulos foram tão meticulosamente removidos, mas esse foi deixado intactos? Eles viram então uma possibilidade de que alguém estivesse tentando deliberadamente induzi-los à algo diferente.


Independentemente disso, uma busca sobre o nome “T. Keane” foi feita em registros de pessoas desaparecidas em todos os países da língua inglesa, o que novamente não levou a nada. Uma possibilidade era que o homem poderia pertencer ao bloco oriental, ou seja, o leste europeu, cujos registros estavam fora dos limites dos investigadores ocidentais com o início da Guerra Fria.


Novamente, parecia que a polícia havia chegado a outro beco sem saída. Depois de seis meses sem novas pistas, o inquérito do legista sobre a morte do homem misterioso finalmente começou, em 7 de junho de 1949. Com poucas evidências novas para continuar, chegaram a mesma conclusão de antes. Ou seja, nada.


O patologista John Burton Cleland disse que o Homem de Somerton muito provavelmente foi intoxicado com algum tipo de glicosídeo cianogênico, substância geralmente encontrada no interior das sementes de algumas grutas como a ameixa, mas não se chegou a uma veredito se teria sido um acidente dado as circunstâncias.


Apesar do relatório patológico inconclusivo, uma grande descoberta foi feita no inquérito, que inicialmente passou despercebida pelos investigadores, que era um pequeno pedaço de papel escondido dentro de um dos bolsos da calça do Homem de Somerton. Isso mudaria todo destino do caso.


Este pedaço de papel foi arrancado de uma página de um livro de poesia chamado Rubaiyat, de Omar Khayyam e continha o título de um poema chamado “Tamám Shud”. Esta poesia falava sobre a existência humana, a brevidade da vida, o êxtase e o amor, e se tornou uma leitura muito popular entre pessoas com tendências suicidas.

O nome “Tamam Shud” significa literalmente "Terminou" ou "Acabou" em Persa. Então tudo levou a crer sobre a inclinação do Homem de Somerton para o suicídio.


A polícia foi à mídia com a nova descoberta e com a esperança de que alguém pudesse identificar o livro no qual havia sido arrancada este pedaço. Em pouco tempo, eles foram contatados por um homem que pediu o anonimato, e que havia encontrado uma rara tradução do livro feita pelo escritor Edward FitzGerald de 1859 no banco de trás de seu carro que estava estacionado em Glenelg, nas proximidades onde o corpo foi encontrado.


Os especialistas forenses examinaram o livro e concordaram que aquele era o mesmo livro que foi arrancado o pedaço encontrado no bolso da calça do Homem de Somerton, mas ninguém tinha a menor noção do por que ele ter arrancado especificamente este pedaço do livro, nem o motivo dele ter guardado no bolso da sua calça, muito menos se tinha ideia de como o livro foi parar no banco de trás do carro de um desconhecido. Nada disso fazia sentido.


Provavelmente a descoberta do livro, mais do que qualquer outra coisa, seja o motivo de ainda estarmos falando sobre o Homem de Somerton mesmo depois de 73 anos do ocorrido. Este pequeno detalhe transformaria o caso em algo mais obscuro e intrigante do que qualquer outra história de ficção. E como todo grande mistério as dúvidas só aumentavam.


Além do pedaço do livro rasgado, especialistas forenses também encontraram letras com uma escrita muito fraca feita a lápis na parte interna da capa do livro.


Parecia algum tipo de código ou cifra:


WRGOABABD
MLIAOI
WTBIMPANETP
MLIABOAIAQC
ITTMTSAMSTGAB

Também escrito no livro havia um número de telefone que não se encontrava na lista telefônica e que pertencia a uma enfermeira local chamada Jessica Thompson. Jessica morava a pouco mais de 1km de distância de onde o corpo do Homem de Somerton foi encontrado e estava claramente conectada com o homem morto de alguma forma.


No momento do inquérito policial, Jessica pediu e recebeu o anonimato da polícia, ela foi citada nos relatórios policiais durante muitos anos apenas pelo nome de “Jestyn”.


Os detetives que entrevistaram Jesssica Thompson notaram a sua maneira evasiva de responder as perguntas, parecendo relutante em oferecer qualquer informação sobre o que, de alguma forma, ela sabia. O mais surpreendente foi a reação dela quando foi mostrado uma réplica em gesso do rosto do homem morto. Jessica ficou visivelmente chocada e foi descrita pelos detetives presentes como: "completamente surpresa e com uma aparência de quem estava prestes a desmaiar".


Apesar dessa reação extraordinária, Jessica Thompson afirmou não reconhecer o Homem de Somerton, mas disse à polícia que ela possuía uma cópia do livro Rubaiyat de Omar Khayyam. Jessica tinha trabalhado como enfermeira em Sydney durante a Segunda Guerra Mundial e lembra-se de ter dado uma cópia do seu livro para um tenente do exército que conheceu por lá, chamado Alf Boxall.


Acreditando que eles finalmente estivessem se aproximando da solução do mistério, a polícia foi em busca do tenente Alf Boxall, na esperança de que ele fosse o Homem de Somerton.


Infelizmente para os policiais, mas, felizmente, para Boxall, eles o encontraram vivo e bem, morando em Syndey. Inclusise, Boxall ainda tinha a cópia do livro Rubaiyat, completo e com a página intacta com a frase Tamam Shud e com uma dedicatória de Jessica Thompson. Boxall não conhecia o homem morto e disse que não teve mais contato com Jessica depois de 1945.


Para a polícia, estava claro que nem Jessica e nem Boxall foram totalmente honestos em seus depoimentos. Pois como poderia haver duas cópias de um livro de poesia, com dois homens diferentes, ambos com o nome e o telefone de Jessica?


Tinha que haver alguma conexão e algumas das suspeitas mantidas pelos detetives sobre o caso começaram a se manifestar.


O código, os rótulos que faltavam e o ar de mistério em torno do homem morto aumentavam a possibilidade de sua morte estar relacionada à espionagem, e ele mesmo pode até ter sido um espião.


Jessica e Boxall sabiam mais do que estavam dizendo ou eles eram espiões e não podiam contar nada à polícia?

As desconfianças dos detetives ganharam forças com a descoberta de outra morte semelhante ocorrida em 1945, um homem de Sydney chamado George Marshall também morreu, supostamente por envenenamento, com o cadáver havia uma cópia do livro Rubaiyat de Omar Khayyam.


O livro era algum tipo de leitura obrigatória para espiões?

A Austrália no período pós-guerra era cheia de espionagem. O Reino Unido e os EUA suspeitavam que os soviéticos tinham agentes operacionais no país, e que estavam querendo se infiltrar em instalações britânicas que estavam construindo um foguete, na base de teste nuclear em Woomera, a 482km ao norte de Somerton.


A tese de espionagem foi claramente apoiada pelos investigadores, e o silêncio suspeito dos envolvidos apenas reforçou a ideia. Mas depois de não chegarem a lugar algum com Boxall e Jessica, o caso foi esfriando rapidamente.


O interesse no Homem de Somerton era revivido periodicamente, com dezenas de pessoas ao longo dos anos alegando saber quem ele era, mas em todas as ocasiões as pistas não levavam a nada.


Muito tempo depois, na década de 1970, Alf Boxall foi entrevistado em uma televisão australiana. Embora admitindo que ele tenha estado envolvido na inteligência durante a guerra, ele negou que houvesse alguma conexão de espionagem no caso do Homem de Somerton, afirmando que era uma história muito exagerada para se acreditar, e que os policiais envolvidos poderiam escrever um melodrama.


O caso do Homem de Somerton seria apenas uma interpretação melodramática do caso?
Mas as tentativas de Boxall em minimizar a ideia tiveram pouco efeito e a sua popularidade só aumentou, uma vez que o caso nunca esteve longe da consciência pública na Austrália. Os rumores de que esta foi uma história inventada e ainda exagerada sobre um esquema de espionagem durante a Guerra Fria persistem até hoje para alguns.


O homem misterioso encontrado na praia de Somerton realmente era um espião morto no curso de alguma missão secreta?

Para quem está curioso em saber qual é o famoso poema Támam Shud, aqui está uma tradução:


"Entenda uma coisa: Um dia a sua alma se afastará do seu corpo e você será atraído para uma cortina negra que flutua pelo desconhecido. Mas enquanto você espera por este momento, seja feliz, porque você não sabe de onde veio e também não sabe para onde irá”.

Alguns estudiosos apontam para um acidente ou mesmo suicídio, outros acreditam que ele era realmente um espião, enquanto alguns acham que tudo foi fruto de um coração partido.
Mesmo hoje em dia é difícil chegar a alguma conclusão do caso, pois muitas das pistas se foram com o tempo, e tentar emendar as pontas soltas pode se tornar um beco sem saída. Tudo o que realmente sabemos é que um homem morreu, sozinho, em uma praia, ninguém o conhece, ninguém nunca o procurou, e talvez, ninguém nunca o amou.


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