O CASO AÍDA CURI [versão da família]
São inúmeras as pessoas que desejam saber o que realmente aconteceu e quem era Aída Curi. Este fato foi e continua sendo emblemático neste último meio século de vida social de nossa pátria. Muitos foram os jornalistas que em artigos ou reportagens publicados em revistas ou jornais interpretaram a seu modo o evento sem consultar a família da vítima ou agindo até contra a vontade da mesma, deturpando os fatos com informações imprecisas e falsas, às vezes até, sem querer, conspurcando a honra de nossa irmã.
E o que é mais: sendo interpelados pela família não se retrataram. Mesmo um importante canal de TV, em programa de grande audiência, teve a ousadia de levar ao ar um filme, sem levar em conta a oposição da família e até uma Notificação judiciária feita antes do programa. E deturparam os fatos , fazendo entender que ela subira porque quis e mostrando-a no terraço do prédio como ingênua, deslumbrada diante da praia de Copacabana, reagindo somente quando os assassinos tentaram o ato sexual. Preferiram eles crer na versão suspeita dos assassinos e no ouvi - dizer popular, desprezando a versão da família e as provas incontestes dos Autos.
Tentarei, portanto, resumir em poucas linhas o evento criminoso, dando a versão de nossa família, baseado nos Autos do Processo que tivemos em mãos e nas informações obtidas seja pessoalmente ou através de parentes, amigos, conhecidos ou entrevistados, relevando algumas incógnitas do crime acontecido aos 14 de julho de 1958.
O EVENTO CRIMINOSO
Terminada a aula do Curso de Datilografia na Escola Remington da rua Miguel Lemos em Copacabana, Aída sai em companhia de uma colega de Curso, como de outras vezes, dirigindo-se ao ponto do ônibus, quando ambas são abordadas por rapazes que costumavam se reunir próximo à rua Miguel Lemos. Isto aconteceu por volta das sete e meia da tarde. Aída contava na época l8 anos, enquanto que a colega, 36 anos; quanto aos rapazes, o mais jovem tinha 16 anos e os outros entre l8 e 22. Tendo sido a primeira reação de Aída uma resposta seca e desconcertante (« que não queria conversa » fls. 84 dos Autos do Processo), um dos rapazes toma dela a caixa de óculos (fls. 45, 84 e 185).
O estojo com os óculos estaria nas mãos de um dos agressores no momento mais acirrado da luta lá no apartamento: "Entregou ao declarante um estojo de couro, com os óculos…dizendo: olha o que eu tomei dela " (fls. 16 e 45) . Momentos depois, foi-lhe arrebatada também a bolsa (fls. 405 v). A uma nova investida de um rapaz do grupo que dizia que devolveria os objetos se ela lhe desse um beijo, a determinação e atitude de Aída são cristalinas. Segundo um dos presentes “Não deu nem quis dar o beijo pedido”( fls. 516 ). Ainda segundo os Autos do Processo, neste preciso momento, e quando Aída, indo em busca dos seus pertences (na bolsa estava também o dinheiro para voltar para casa fls. 7 ), já se encontrava bem em frente ao edifício Rio Nobre (fls. 405 v), afasta-se a colega, dizendo para os rapazes que deixassem Aída às 8 horas no ponto do ônibus (fls. 19). Aída , agora sozinha, tenta por todos os meios recuperar os objetos dela tomados.
Em sua ânsia de retomá-los , e estando já às portas do prédio do crime, residência de um dos culpados, não desconfiou um segundo sequer das reais intenções dos rapazes, intenções que estavam bem longe de tudo o que ela poderia imaginar…Não se fale em “ingenuidade”, mas desconhecimento completo do grau da falsidade e da perversidade dos jovens já afeitos a este gênero de violência sexual. De fato, a « curra » já estava em andamento. A violência sexual fizera definitivamente sua entrada na Zona Sul do Rio, assegurada de um lado pela inércia da Polícia , e de outro pela impunidade, caso os culpados fossem presos. Segundo os comentários ouvidos então, outras moças ja haviam escapado das malhas deste mesmo grupo de jovens que se reuniam na esquina da Rua Miguel Lemos, perto da Escola Remington onde Aída estudava Datilografia. A violência física propriamente dita teve início na porta do elevador social ( o qual era raramente usado pelos moradores do prédio), para dentro do qual minha inditosa irmã havia sido puxada.
O detalhe desta primeira agressão, quando é introduzida no elevador à força, foi revelado à nossa família por duas testemunhas que preferiram na ocasião guardar o anonimato. Aída sente o pavor da agressão e da traição, reage, grita ("Bem que eu ouvi uns gritos", diz alguém à nossa mãe quando esta chega ao local na noite do crime), mas o elevador já está em movimento. Para no 12º andar e, segundo as primeiras notícias do jornal carioca "O Globo" aos l6 de julho de l958, foi dentro do apartamento 1201, ainda em construção, cheio de entulhos e às escuras, com o piso ainda não taqueado, que a luta continuou contra dois ou três agressores, tendo Aída mesmo num primeiro momento tropeçado nas peças de madeira (esquadrias) (fls. 241). Perde os sentidos em consequência do stress após a luta desigual. Seu corpo em estado de completa exaustão física é transportado ao terraço, sendo utilizada para isto uma escadinha em caracol que do l2º andar conduz ao terraço, colocado sobre o peitoril e lançado à Avenida Atlântica. O pedacinho de ouro do Processo estava na pergunta feita ao porteiro do edifício por um dos envolvidos: "no dia em que a moça foi jogada , você não desceu pelas escadas ?" (fls. 26).
Poucos instantes depois de seu corpo haver tocado o solo, são vistos ao lado da vítima a bolsa, o caderno e o livro que lhe pertenciam. Dentro da bolsa foram encontrados o lencinho manchado de sangue e os óculos despedaçados. O lencinho dobrado e manchado de sangue dentro da bolsa era uma das provas da luta, contra os interessados que desejavam fazer crer que todos os indícios de luta encontrados em seu corpo não eram senão consequência da queda. Estavam ali a caracterizar a luta o rasgamento da anágua, bem como o violento arrancar do porta-seios (fls. 353). Mesmo na ausência de provas como estas, a violência ficou sobejamente provada durante a reconstituição do crime: a bofetada, o rasgamento das vestes…
Poucas foram as palavras proferidas por Aída durante a luta ( pelo menos é o que nos referem os réus em seus depoimentos durante o Processo): "Deixem-me ir embora" e "Eu sou virgem". Era devota de Santa Maria Goretti, mártir da castidade. Aída escreveria com sangue o que havia registrado em seu caderno de notas pessoais: "Antes morrer que pecar".
O CONTEXTO SOCIAL DA ÉPOCA
Vale lembrar ainda que, nos anos 50, filmes de extrema violência eram exibidos no Brasil e atingiam a psicologia mal formada de alguns adolescentes do Rio, exemplo « O Rebelde » e « Juventude Transviada ». O Rio de Janeiro vivia momentos inquietantes com o fenômeno da “juventude transviada”, protagonista também das famosas "curras".
A zona sul estava praticamente "despoliciada". Duas ou três semanas antes da morte de Aída, um mendigo tinha morrido em Copacabana… incendiado por mãos criminosas de um jovem do bairro (fls. 130 v). Nenhuma notícia nos periódicos de então, sobre uma séria sindicância ou mesmo simples pesquisa policial com referência à autoria deste revoltante crime!… Para tornar mais dramático ainda o quadro social, a droga fazia aparição em Copacabana. Não seria uma suposição infundada que alguns dos implicados neste crime já estivessem sendo aliciados por este vício. Falou-se na época que teria havido entorpecente no caso e inclusive que « bocas de fumo » existiam próximo ao local do crime. É quase impossível conhecer toda a profundidade da degenerescência moral do grupo que tentou arrebatar a honra e a inocência de Aída.
AS INCÓGNITAS DO CRIME
Muitas questões ficaram sem resposta até os dias de hoje:
1- Quem dos envolvidos já conhecia Aída e a havia apresentado ao grupo? Falou-se na época que Aída ja era visada por eles.
2- Teriam estado lá em cima, na hora da luta, outras pessoas que faziam parte do grupo, além dos dois que sendo maiores foram julgados pelo Tribunal do Júri e do menor implicado que não foi a julgamento mas recolhido ao Juizado de Menores? Um dos envolvidos afirmou "conhecer os hábitos da turma, de quererem participar dos encontros amorosos dos companheiros" (fls 51). Comentou-se na época que, além destes três, outras duas ou três pessoas também subiram… e lá ficaram escondidas na hora do assédio criminal. Um deles declarou que, no momento da queda do corpo, esteve na entrada do prédio procurando pelo porteiro: "entrou no prédio, saindo pela Avenida Atlântica"(fls. 12 v) .O porteiro não foi encontrado. Esclarece mais o mesmo declarante : "no preciso momento em que entrou, a moça caiu" (fls. 410).Este quarto personagem foi igualmente condenado a 1 ano e 3 meses de prisão.
3- Estaria apenas desfalecida ou estava já morta quando o seu corpo foi lançado?
4- De quem partira a ideia macabra de arremessar o corpo? Duas hipóteses foram levantadas na época : teria sido por iniciativa dos próprios rapazes, supondo que estivesse morta, ou a conselho de moradores e frequentadores do prédio para simular o suicídio.
5- E quais as pessoas que lançaram o corpo?
6- Quem desceu do alto do prédio para colocar o livro e a bolsa de Aída ao lado do cadáver na Avenida Atlântica? Um senhor nos contou que nada vira ao lado do corpo quando passava por ali exatamente após a queda do corpo.
SUICÍDIO OU HOMICÍDIO?
Desde o início, foi descartada a hipótese do suicídio, seja pela Perícia Criminal como por todos os que conheceram Aída. E aqui cabe uma pergunta ainda: Por que a Perícia Criminal só foi avisada três horas após o crime? Que teriam feito os interessados neste espaço de tempo com o objetivo de despistar a Polícia da verdadeira e única versão do crime e fazer crer o o suicídio?
A exclusão da hipótese de um simples suicídio e ponto final coube inicialmente a um homem impoluto, o perito criminal Seraphim da Silva Pimentel. Este, após haver observado o corpo ferido brutalmente, durante o assédio sexual de que foi vítima, ordena a detenção do porteiro do edifício Rio Nobre, afrontando os interessados que se esforçavam por fazer crer, desde o início, o suicídio. Este perito afirmou-nos que se não fosse ele, o crime ia morrer no nascedouro… Sofreria este profissional experimentado e correto extrema pressão moral a fim de escamotear a verdade mas permaneceu inabalável… Mais tarde, seria afastado do Processo e substituído por alguém ligado à família de um dos implicados… Inúmeros detalhes permaneceram na obscuridade pois a nenhum dos implicados interessava revelar nomes de pessoas que por sua vez pudessem comprometê-los ainda mais.
Ainda a ser esclarecidos detalhes como: as marcas e contusões em seu corpo provocadas por objeto contundente (foi recolhido durante as investigações um anel com a efígie de São Jorge usado por um dos implicados); o ferimento causado pelo « soco inglês », objeto pontiagudo (um detalhe da agressão a nós revelado por um dos entrevistados, que obtivera esta informação de um amigo que havia estado com um dos culpados na mesma noite do crime ); os ferimentos profundos no seio podendo ser provocados por unhas ou dentes (perícia jamais concluída), assim como a não apresentação das suéteres usadas pelos assassinos durante a luta com a vítima.
Estas e muitas outras questões ficam aguardando a confissão da verdade por algum dos envolvidos a fim de tranquilizar a própria consciência e dar satisfação à nossa família e à Sociedade.
UM MAR DE LAMA
Jamais se poderá aquilatar o jogo de influências para o acobertamento dos criminosos e o grau de conspiração do silêncio para a deturpação da verdade. O combativo jornalista e repórter brasileiro David Nasser terçou armas, ameaçado em sua incolumidade física, a fim de que as forças ocultas não prevalecessem… O advogado de nossa família, Dr. José Valladão, convicto da inocência de Aída, não titubeou em proclamá-la, alto e bom som. Haveria ele de enfrentar os advogados de defesa dos acusados, que em sua torpe e solerte ação para livrar os seus clientes da prisão, assacavam toda sorte de dúvidas sobre a virtude da vítima.
A técnica da defesa dos acusados consistia em colocar toda a culpa sobre o menor implicado, tendo em vista que este não se sentaria no banco dos réus, em seguida fazer crer a todo custo a aquiescência de Aída às solicitações dos culpados e finalmente provar que se tratava de um suicídio. Falou-se da atuação de altas patentes das Forças Armadas e de figuras importantes da Polícia ligadas aos implicados, ou parentes dos mesmos. Dizia-se ainda que o porteiro do prédio, que ficara foragido durante vinte anos, até que fosse prescrito o crime, fora protegido por alta patente das Forças Armadas. Era voz comum ademais que testemunhas, em número expressivo, que teriam muito para esclarecer, nunca foram ouvidas, foram afastadas para bem longe ou silenciaram com medo de represálias… O Promotor Maurílio Bruno de Oliveira Firmo, que atuou no Caso, falou de “um mar de lama” no Processo. Resta igualmente misterioso o porquê da impronúncia dos réus por um dos juízes do Processo, após a condenação dos mesmos a altíssima pena pelo Tribunal do Júri, presidido pelo juiz Otávio Pinto. No dia em que foi exarada esta sentença, o Brasil acordou sobressaltado!... A impronúncia motivou uma série de reprovações pelo Brasil inteiro, inclusive uma declaração, pela Imprensa, do Eminentíssimo Senhor Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Jaime de Barros Câmara que por sinal conhecera pessoalmente minha irmã, por ocasião das visitas que fazia periodicamente ao Educandário Gonçalves de Araújo, em São Cristóvão, o colégio de freiras dirigido pela Congregação "Filhas de São José", onde Aída havia permanecido doze anos.
Para tranquilidade do povo, o renomado e douto Curador João Baptista Cordeiro Guerra, insigne mestre de Direito, reduziria a pó as razões da Impronúncia, mandando os implicados a novo julgamento, onde um deles foi condenado finalmente a 8 anos de prisão enquanto o segundo não foi julgado por estar naquele momento foragido.
UM APELO
Não resta dúvida que o esclarecimento dos detalhes da « Curra », bem como a denúncia e elucidação dos pontos obscuros do Crime e do Processo são de suma importância para que venha à luz ainda mais a inocência e a pureza de Aída. A nós não interessa absolutamente condenar ou acusar quem quer que seja, sobretudo após tantos anos passados. É importante saber também que nossa mãe antes de morrer perdoou a todos, em nome de seus quatro filhos, Nelson, Roberto, Maurício e Waldir. A carta data de 29-9-l975 com a conclusão "Com o perdão de todos os meus filhos". Assinado Jamila Jacob Curi.
O leitor deste relato poderá imaginar a grandeza do gesto de nossa mãe, visto Aída ser filha única, mãe amargurada e perseguida pelas imagens da luta desesperada da filha tão meiga e carinhosa. Queremos, sinceramente, dar aos culpados a possibilidade de recomeçarem uma vida nova, purgando pelo arrependimento o passado negativo, fazendo doravante somente o bem, logrando assim a paz e a serenidade para eles e para as suas famílias tão sofridas e provadas também.
Tudo o que relatamos acima é também ocasião de um apelo a todo e qualquer conhecedor de fatos, jamais explicados ou suficientemente esclarecidos, para que digam o que sabem. Será um benefício para a sociedade que assim ficará ciente de que a verdade um dia vem à tona, que a mentira e o erro não têm a ultima palavra.
Que ninguém passe indiferente diante do corpo de uma jovem estatelado na calçada! O conhecimento dos fatos bem como a reação popular , sem extremismos nem condenações e julgamentos, mesmo após quase meio século, são necessários para que caso como este não se repita. E mais ainda : que as novas gerações saibam que o Brasil tem memória e que há quase meio século assistimos a um Crime e a um Processo em que campeou a corrupção e imperou a impunidade assegurada pelos grandes que deveriam salvaguardar a paz das famílias.
É nosso desejo que fique patente a todos, a isenção de ânimo do autor destas linhas e a atitude de perdão incondicional de nossa família; outrossim fazemos votos que os leitores nos acompanhem nestes mesmos sentimentos.
Temos em Cristo a orientação fundamental:
« Sede misericordiosos, como o vosso Pai celestial é misericordioso ».
Cairo, l1 de junho de 2006 Monsenhor Maurício Curi Irmão de Aída Curie.
TEXTO ORIGINAL NA ÍNTEGRA AQUI:
http://web.archive.org/web/20060625133317/http://www.egliseimmaculee.com/casoaidacuri.htm
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